quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

O crime do Governo Vargas que a História do Brasil não divulga

Texto de Rafael Rocha – Jornalista – Recife/PE
publicado no HUMANITAS nº 12 – Julho 2013

Os militares mataram, estupraram, atearam fogo nas casas, saquearam e destruíram tudo que existia no Sítio Caldeirão da Santa Cruz, Crato, Ceará


O ditador Getúlio Vargas, o governo do Estado do Ceará e o coronelismo cearense sepultaram, na década de 1930, uma alternativa de poder popular contra a oligarquia coronelista nordestina, apoiados pela Igreja Católica, políticos corruptos e latifundiários. Que alternativa de poder popular foi essa? 
Os livros de história não contam isso e nem levam ao conhecimento dos estudantes. No dia 11 de setembro de 1936, tropas do Exército brasileiro comandadas pelo tenente José Góis de Campos Barros dizimaram uma comunidade independente, no Sítio Caldeirão da Santa Cruz do Deserto, perto do Crato, no Ceará. Mil ou um pouco mais de pessoas foram sumariamente assassinadas.
O massacre do Sítio Caldeirão foi relegado ao esquecimento pelos historiadores. Porém, o crime perpetrado pelas Forças Armadas, sob as ordens do ditador Vargas, tendo como seu ministro da Guerra, o general Eurico Gaspar Dutra, secundado pelo governo do estado do Ceará, e apoio da Igreja Católica, não foi esquecido. No ano de 2008, a ONG cearense SOS Direitos Humanos ajuizou Ação Civil Pública na Justiça Federal, acusando a União e o Estado do Ceará de crime de lesa-humanidade e genocídio.
Após passar pela 1ª Vara Federal, em Fortaleza, e pela 16ª Vara Federal, em Juazeiro do Norte, a ação foi extinta sem julgamento do mérito, em setembro de 2009. A ONG apelou então ao Tribunal da 5ª Região Federal, no Recife, argumentando que não existe prescrição para crimes de lesa-humanidade, e denunciou o Governo brasileiro à Organização dos Estados Americanos (OEA) pelo genocídio de mil moradores do Sítio Caldeirão.
A ONG deseja que a União e o governo do Ceará informem a localização da cova coletiva das vítimas e que os corpos sejam exumados, identificados e enterrados com dignidade, bem como que os documentos do massacre sejam liberados para consulta pública e o crime seja incluído nos livros de história.
A fazenda Caldeirão da Santa Cruz do Deserto representou para as elites cearenses um antro de fanatismo e comunismo primitivo. O projeto de sociedade construído naquela fazenda pelo beato José Lourenço foi ao encontro dos anseios da população sofrida do Nordeste. O desenvolvimento da comunidade provocou medo nas elites do Ceará. O Caldeirão era um espaço onde o trabalho coletivo era a base da organização social.
O modo de vida perpetuado no Sítio Caldeirão era regido por uma ética, com o fruto do trabalho sendo dividido de acordo com a necessidade de cada família, constituindo-se assim numa sociedade alternativa às práticas exploratórias vigentes naquele tempo e espaço. 
“Ninguém passava necessidade. Organizava-se uma sociedade religiosa na qual o trabalhador não era espoliado pelo dono das terras. (…) o trabalho era a única forma de obter o pão de cada dia, pois ninguém deveria viver às custas do trabalho alheio”. (RAMOS, 2000: 372; 374). 
José Lourenço criou uma sociedade igualitária e autossuficiente. No local, os lavradores produziam algodão e fabricavam suas roupas, criavam gado e peixe, produziam todos seus alimentos, suas ferramentas etc. Não faltava água nem comida. Conhecendo a existência dessa comunidade, vários outros povos rumaram para a região, aumentando o número de habitantes. A partir de 1935, os seguidores de José Lourenço começaram a ser tachados de comunistas e o Exército enviou um espião ao local, o capitão José Gonçalves Bezerra. Este relatou suas investigações ao governador do Ceará da época, Francisco de Menezes Pimentel, que decidiu pela intervenção militar. Sob o comando do tenente José Góis de Campos Barros, as Forças Armadas perpetraram um genocídio, utilizando até bombardeio aéreo contra a população indefesa do Sítio Caldeirão.
A Igreja Católica também estava temerosa com o desenvolvimento da comunidade, pois temia que José Lourenço pudesse se transformar em um novo Padre Cícero, tornando-se, ainda, um moderno Antônio Conselheiro. Começou a divulgar, então, o boato de que José Lourenço abrigava integrantes da Intentona Comunista, possuía armas escondidas e que a comunidade representava uma séria ameaça ao Estado e ao Governo ditatorial de Getúlio Vargas.
Hoje sabemos que a comunidade liderada por José Lourenço não tinha a mínima ligação com o marxismo, mas isso não chegou a ser levado em conta na época. As tropas do tenente José Góis de Campos Barros chegaram ao Sítio Caldeirão no dia 11 de setembro de 1936. José Lourenço conseguiu fugir com alguns familiares, mas aqueles que ficaram no local foram massacrados pelo Exército. Os militares mataram, estupraram, atearam fogo nas casas, saquearam e destruíram tudo que existia no local.
Na busca por José Lourenço ordenou-se um bombardeio aéreo sobre a Serra do Araripe, sob as ordens do capitão José Macedo e com o aval do ministro da Guerra, general Eurico Gaspar Dutra. Metralharam e lançaram bombas sobre os agrupamentos dos moradores camponeses, assassinando entre 700 a mil pessoas. José Lourenço fugiu e só morreu no dia 12 de fevereiro de 1946, na cidade de Exu, Sertão de Pernambuco.

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