quarta-feira, 30 de abril de 2014

O “Galo da Madrugada” (uma crônica escrita no carnaval) e Contra o veneno do racismo (artigo de Ricardo Matos C. Vieira)


Texto de Valdeci Ferraz – Caruaru/PE 
Publicado no HUMANITAS nº 22 – Maio/2014 – Página 6
A viagem de metrô fora sufocante. Os foliões disputaram os espaços como se aquele fosse o último embarque de um país condenado por uma guerra. Pereira, espremido contra a lateral do trem, fingira se contrariar, pois na verdade tinha adorado o contato de um corpo moreno, de costas, os cabelos dela se misturando com sua barba hirsuta e meio grisalha. Tivesse um folião atento observado com mais atenção, teria visto a simplicidade de sua fantasia: um turbante vermelho circundado por uma faixa preta, o cafetã de linho branco com faixas azuis, descendo suavemente sobre uma proeminente barriga, atingindo os pés na altura dos calcanhares. O que ninguém pôde ver foi a decepção interior de José Pereira por estar solitário no meio daquela multidão multicor. "Ela bem que podia estar aqui. Claro, eu não teria vindo de metrô, mas até que foi legal. Fazer o quê? Chamei-a. Não veio porque não quis". 
Quando nasceu no sábado de carnaval há sessenta anos, o pai logo gritou: vai se chamar José Pereira. Protestos, reclamações, sugestões de nada adiantaram. Com um ano de idade já estava fantasiado de pirata, brincando carnaval nos braços do pai. Os anos passaram, vieram outros carnavais e as fantasias foram se acumulando nas brumas da existência, formando um universo particular, mágico e poético, onde apenas os poetas, as mulheres, a poesia e o carnaval tinham acesso. O Carnaval era a melhor festa do ano. São João, Natal, Ano Novo, nada se comparava ao tríduo momesco, ocasião em que voltava aos velhos tempos, à adolescência quando o colorido, as colombinas e pierrôs, os confetes e serpentinas, os blocos de rua desfilando com belas meninas ao som do frevo ou de uma marchinha.
Só sabe que agora estava ali, o Sultão das Arábias precisava ir ao encontro de suas mulheres trazidas nas asas do “Galo da Madrugada”. Literalmente arrastado pela turba carnavalesca deixou a Estação Central, seguindo em direção à Ponte Duarte Coelho onde se concentrava a maior parte dos adoradores do “Galo”. A brisa vinda do mar fez inflar o cafetã, realçando a bermuda azul. Conferiu a carteira, certificou-se de que a máquina fotográfica digital estava pronta para registrar o que fosse interessante. Ao chegar à Avenida Guararapes lembrou-se de um conhecido que aproveitava o carnaval para faturar um pouco mais vendendo cerveja, refrigerantes e cachorro-quente. Quero molhar a garganta. Mal se assentara, uma antiga colega de faculdade apareceu. Entre umas e outras...
Quarta-feira de cinzas, seis horas da manhã. A ressaca de Momo deixava no ar um cheiro de urina e cerveja. Com passos trôpegos transpôs a praça pública. Os confetes conferiam às ruas, às calçadas, aos muros uma visão de imagens pontilhadas, dando a Pereira a impressão que flutuava num sonho. Um folião esparramado sobre o banco da praça trouxe a imagem da mulher. Deve estar dormindo, talvez nem acorde com minha chegada. A viagem de metrô fora sufocante. Os foliões disputaram os espaços como se aquele fosse o último embarque de um país condenado por uma guerra. Pereira, espremido contra a lateral do trem, fingira se contrariar, pois na verdade tinha adorado o contato de um corpo moreno, de costas, os cabelos dela se misturando com sua barba hirsuta e meio grisalha. Tivesse um folião atento observado com mais atenção, teria visto a simplicidade de sua fantasia: um turbante vermelho circundado por uma faixa preta, a cafetã de linho branco com faixas azuis, descendo suavemente sobre uma proeminente barriga, atingindo os pés na altura dos calcanhares. O que ninguém pôde ver foi a decepção interior de José Pereira por estar solitário no meio daquela multidão multicor. "Ela bem que podia estar aqui. Claro, eu não teria vindo de metrô, mas até que foi legal. Fazer o quê? Chamei-a. Não veio porque não quis". 
Quando nasceu no sábado de carnaval há sessenta anos, o pai logo gritou: vai se chamar José Pereira. Protestos, reclamações, sugestões de nada adiantaram. Com um ano de idade já estava fantasiado de pirata, brincando carnaval nos braços do pai. Os anos passaram, vieram outros carnavais e as fantasias foram se acumulando nas brumas da existência, formando um universo particular, mágico e poético, onde apenas os poetas, as mulheres, a poesia e o carnaval tinham acesso. O Carnaval era a melhor festa do ano. São João, Natal, Ano Novo, nada se comparava ao tríduo momesco, ocasião em que voltava aos velhos tempos, à adolescência quando o colorido, as colombinas e pierrôs, os confetes e serpentinas, os blocos de rua desfilando com belas meninas ao som do frevo ou de uma marchinha.
Só sabe que agora estava ali, o Sultão das Arábias precisava ir ao encontro de suas mulheres trazidas nas asas do “Galo da Madrugada”. Literalmente arrastado pela turba carnavalesca deixou a Estação Central, seguindo em direção à Ponte Duarte Coelho onde se concentrava a maior parte dos adoradores do “Galo”. A brisa vinda do mar fez inflar o cafetã, realçando a bermuda azul. Conferiu a carteira, certificou-se de que a máquina fotográfica digital estava pronta para registrar o que fosse interessante. Ao chegar à Avenida Guararapes lembrou-se de um conhecido que aproveitava o carnaval para faturar um pouco mais vendendo cerveja, refrigerantes e cachorro-quente. "Quero molhar a garganta". Mal se assentara, uma antiga colega de faculdade apareceu. Entre umas e outras...
Quarta-feira de cinzas, seis da manhã. A ressaca deixava no ar um cheiro de urina e cerveja. Com passos trôpegos transpôs a praça pública. Os confetes conferiam às ruas, às calçadas, aos muros uma visão de imagens pontilhadas, dando a Pereira a impressão que flutuava num sonho. Um folião esparramado sobre o banco da praça trouxe a imagem da mulher. "Deve estar dormindo, talvez nem acorde com minha chegada". 
Ao longe um galo cantou. Arregalou os olhos para melhor ver as horas no relógio, que junto com a bermuda eram as únicas coisas que sobrara da fantasia de sultão. Então viu o dia: “qua... Quarta!? Eu bebo e o relógio se embriaga. Saí no sábado, como pode ser quarta? Melhor perguntar a alguém. É, seu Zé, hoje é quarta, o carnaval acabou”. No mesmo instante, os pontos coloridos se rearrumaram e ele se viu saindo do metrô em direção à Avenida Guararapes, naquela manhã luminosa de sábado. As imagens foram chegando embaçadas, embaralhadas. Jocasta. Sim, não podia esquecer aquele nome. E foi na barraca de Roberto. A mulher estava uma coisa. Foram para o meio da folia. Fotos. “Eu tirei fotos dela sim. Cadê a máquina? Puta merda! Perdi a máquina e a carteira! Mas onde? Foi no “Galo” ou em Olinda? Como fui parar em Olinda? Não sei como cheguei lá, mas lembro dos bonecos gigantes, as ruas lotadas. Marco Antonio e sua turma! Agora estou me lembrando. Foi ali que comecei a misturar as bebidas. Nunca me dei bem com o vinho, nem com uísque. Caralho! Devo ter feito alguma merda por lá, num me lembro de tudo. Mas isso foi no sábado para o domingo. Dormi lá, na casa de quem?” Deu um branco na mente, mas lembrou de haver encontrado Valdir e ido ambos ao bairro de Água Fria. “Acho que devia estar ainda com a fantasia senão não tinham me levado. Se ela tivesse ido comigo tenho certeza que isso não teria acontecido”.
Pereira continuou falando sozinho, tentando lembrar mais coisas, mas quanto mais esforçava mais lhe doía a cabeça e a sensação de que tinha ultrapassado seu limite. Chegando mais perto de casa a agonia aumentou. “Que vou dizer a ela? Porra nenhuma! Vou entrar e deitar, depois explico o que aconteceu. Vou lembrar sim. Minha memória é boa. Lembro de um carnaval em que sai com papai e ocorreu algo parecido. Teria ido para cama com alguma mulher? Será que fui roubado em Olinda, em Água Fria? Ora, porra! quem mandou não querer ir comigo”. 
Não precisou bater na porta. Estava aberta. Estranhou. Silêncio total. Antes de seguir para o quarto olhou a cama dos filhos. Não viu ninguém. Apressou os passos. A mulher também não estava na cama. “Onde se meteu aquela danada? Será que foi embora pra casa do pai? É bem possível. Ela vive ameaçando. Acho que foi isso mesmo. Depois ela volta, ela sabe que não pode viver sem mim. Mas que dá uma agonia dá. Preciso descansar um pouco. Estou sentindo as pernas fracas”. Abriu a geladeira, mas só encontrou as garrafas de água. A cama arrumada era um convite. Passou a chave na porta e deitou-se. Menos de cinco minutos acordou assustado com a mulher batendo levemente no seu ombro:
- A que horas nós vamos pro “Galo”? 
******** 
Contra o veneno do racismo 
Republicação do texto de Ricardo Matos Bezerra C. Vieira - Rio de Janeiro- RJ – Publicado no Humanitas nº 01- Setembro/2012 

Sou descendente de nordestinos, também, assim como de sulistas, de cariocas da gema, de sarracenos, negros, portugueses (anteriormente miscigenados, ainda na Península Ibérica), indígenas, mamelucos, cafuzos. Somos alvarengas, fogoiós, lilases, marinheiras, castanhos, enxofrados, melados, pálidos, roxos, sararás, turvos, verdes! Como definiu Darcy Ribeiro, somos um POVO NOVO que se formou pela influência cultural e miscigenação de várias etnias.
Pessoas que destilam o veneno do racismo guardado dentro de si e deixam escapar em brincadeiras com os mais íntimos, em momentos de efusão emocional ou cobertos pelo anonimato, esses são, em parte, os POVOS TRANSPLANTADOS sobre os quais também escreveu o citado antropólogo. Eles mantiveram os costumes dos países de origem, como em certas colônias no sul do Brasil onde alguns apoiaram o nazismo na época, assim como na Argentina e no Uruguai que receberam criminosos nazistas no pós-guerra. Já ouvi alguns sulistas dizerem que têm sangue azul (de brincadeira, claro. Inocentes brincadeiras).
O que seria de São Paulo sem os nordestinos? O Brasil começou no Nordeste. De lá, muitos vieram para cá bem antes dos movimentos migratórios mais recentes do século passado. Sei que muitos paulistas consideram-se quase italianos. Da Itália temos muitos episódios de preconceito. Talvez alguns deles queiram se esquecer da intensa miscigenação na Bota desde a antiguidade. No sangue deles corre todo o Magreb, Machrek, Pérsia e até, quem sabe, a Etiópia que eles colonizaram por breve período. O preconceito ultrapassa a barreira da informação e cultura, pois é um elemento absorvido desde a mais tenra infância. Pobres coitados esses racistas, pois eles têm vergonha de si mesmos enquanto cortejam excessivamente o estrangeiro, acabando-se em louvores aos austríacos, saxões, bávaros, italianos, franceses, ingleses, irlandeses, escandinavos, eslavos.
Muitos japoneses percebem-se superiores aos filipinos, malaios, vietnamitas ou chineses. Na Era Tokugawa os japoneses costumavam referir-se aos indianos como "aqueles macacos pretos do sul" e aos europeus germânicos como "sujos ursos dourados peludos com olhos de gato que deveriam ser expostos em jaulas". É a loucura suprema sobre a qual escreveu Erasmo de Rotterdam: "Cada povo considera-se melhor que o outro e orgulha-se profundamente da sua nação". Dentro de um mesmo país, cidade ou até bairro há polarizações preconceituosas. 
Os seres humanos, tão orgulhosos de si, vistos do Olimpo, se parecem mais com formiguinhas correndo de um lado para o outro. De vez em quando alguma catástrofe ou epidemia leva milhares deles, sejam nobres ou padres, ricos ou pobres, verdes ou roxos - o que mal se percebe lá de cima.

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